29 de Setembro de 2021, Tallahassee, Flórida – EUA. De dentro de um dos 149 dispensários da Trulieve, a maior operadora de Cannabis medicinal nos EUA, a CEO da empresa Kim Rivers comemora a primeira venda de um comestível de Cannabis na Florida.
A Trulieve adquiriu no começo de 2021 uma de suas maiores competidoras, a empresa Harvest, passando assim a ter 149 lojas em 11 estados, incluindo a Flórida, mais de 3,1 milhões de pés quadrados de cultivo e pouco mais de 8.500 funcionários. Antes do fechamento do negócio, a Trulieve tinha apenas 85 lojas na Flórida.
Negócios como esse aquecem um mercado bilionário que vem crescendo rapidamente desde a última década. Diversas empresas de Cannabis inclusive já possuem capital aberto e negociam ações na bolsa, por exemplo. De acordo com um comunicado de imprensa divulgado pela empresa, a Trulieve registrou receita de US$ 215,1 milhões no segundo trimestre de 2021 e lucro líquido de US$ 40,9 milhões, enquanto a Harvest registrou receita de US$ 102 milhões. Combinadas, as empresas – negociadas na Bolsa de Valores do Canadá – tiveram as maiores receitas relatadas entre as empresas de Cannabis divulgadas publicamente nos EUA, disse o comunicado.
Porém, um dado tem chamado a atenção: Assim como Kim Rivers da Trulieve, mais de 80% dos empreendedores de Cannabis são brancos. Apenas 5,7% desses empreendedores são hispânicos ou latinos e 4,3% são negros. O racismo e xenofobia que motivaram o proibicionismo ainda se mostram presentes e fazem com que os indivíduos e comunidades que mais foram impactados por essa política continuem sendo marginalizados e ocupam apenas a base da pirâmide da mão de obra no setor.
Ao mesmo tempo que brancos empreendem, negociam ações e lucram com esse mercado, mais de 40 mil pessoas ainda estão presas por conta de crimes relacionados à Cannabis apenas nos EUA, sendo que pelo menos 80% destas pessoas são negras ou latinas. Esse dado torna-se ainda mais revoltante quando levamos em conta o fato de que a Cannabis faz parte da ancestralidade do povo Africano e hoje está sendo apropriada exatamente pelos responsáveis pela repressão a esta cultura e criminalização a estes indivíduos.
Felizmente, caro leitor do Blog da TGH, este texto trará também iniciativas sendo feitas pelo mundo que buscam corrigir esta injustiça e realizar o enorme potencial da Cannabis de elevar culturalmente e financeiramente estas comunidades que foram injustiçadas.
Políticas públicas
Uma resolução foi aprovada em Evanston, cidade norte-americana do estado de Illinois em março de 2021, determinando a distribuição da primeira parte dos recursos de um fundo de reparações criado em 2019, prevendo um montante de cerca de US$10 milhões (aproximadamente R$ 57 milhões) em um período de 10 anos.
Durante a primeira fase, o foco será voltado para moradia, com um subsídio de US$ 400 mil (cerca de R$ 2,28 milhões) sendo distribuídos a 16 moradores negros cujas famílias tenham sido afetadas por políticas de habitação racistas em vigor na cidade entre 1919 e 1969 ou que sofreram discriminação nesse setor nos anos posteriores. Cada família deverá receber subsídios de US$ 25 mil (cerca de R$ 142,7 mil) para ajudar na compra ou reforma de imóvel.
No estado de New York, a discussão caminha em torno da Lei de Regulamentação e Tributação da Maconha de 2013, que defende que mais dinheiro seja canalizado para minorias. Segundo o projeto orçamentário apresentado, o intuito é que 40% da receita seja investida em comunidades formadas por minorias, 40% seja destinado à educação pública, e os 20% restantes sejam alocados no tratamento, prevenção e educação contra o uso das drogas. Parte da legislação que libera o uso ainda prevê que o Estado deve retirar os antecedentes criminais de pessoas que foram condenadas por crimes relacionados à Cannabis, e deverá também suspender as multas aplicadas nas pessoas que haviam sido pegas portando até 85 gramas de erva, uma vez que esse é o novo limite de porte estabelecido pela lei para o porte individual.
“Acabo de sancionar a lei legalizando o uso adulto da Cannabis. A lei cria a eliminação automática de condenações anteriores por uso de maconha. Este é um dia histórico”, escreveu no Twitter o governador de Nova York, Andrew Cuomo. Por meio de comunicado, ele ressaltou que “esta legislação histórica dá justiça a comunidades marginalizadas há muito tempo, abraça uma nova indústria que fará a economia crescer e estabelece garantias de segurança substanciais para a população”.
Além de fomentar dezenas de milhares de postos de trabalho, a legalização deverá injetar nos cofres do estado cerca de US$ 350 milhões (ou R$ 1,9 bilhão) por ano.
O prefeito da cidade de Nova York, Eric Adams, disse que quer incentivar a produção legalizada de Cannabis na cidade. A proposta envolve o investimento de US$ 4,8 milhões (aproximadamente R$ 22 milhões) em grupos que ele chamou de ‘afetados pela guerra às drogas’. Adams busca ajudar pessoas que foram prejudicadas no passado pela repressão à venda de maconha, transformando-as em empreendedoras da indústria da Cannabis legal. As informações são da agência de notícias AP.
Em uma espécie de curso profissionalizante, o projeto envolve ensinar sobre o mercado da Cannabis e dar orientações para abertura de pequenos negócios, como dicas para obter licenciamento de venda e conseguir financiamento, por exemplo. “Está na hora da nossa cidade fazer um investimento proativo para garantir que pessoas desproporcionalmente afetas pela criminalização dessas substâncias possam obter os benefícios da nova indústria”, disse Adams em nota. O prefeito, que foi capitão da polícia, acredita que a indústria da maconha legal pode ajudar a recuperar a economia da cidade após a pandemia da covid, junto com a volta do turismo e da vida noturna. A proposta do prefeito é dar oportunidade para que essas pessoas fiquem na linha de frente da indústria da maconha.
Essas ações e projetos são somente o começo de um longo trajeto que busca não apenas reparar danos, mas gerar equidade social em uma população que convive diariamente com as marcas deixadas pela política eugenista e muitas outras de teor fortemente racistas. No entanto, serão esses pequenos primeiros passos dados por esses Estados estadunidenses que posteriormente servirão de modelo e espelho para políticas melhores e de alcance maior, não se limitando apenas a cidades e estados, mas sim a todo o país.
Um ótimo exemplo de iniciativa, desta vez da sociedade civil, é o Last Prisoner Project. O projeto, do ativista Steve D’Angelo (que conversou com a TGH em um talks muito legal que você confere aqui), trabalha para reparar os danos da criminalização da Cannabis por meio de intervenção legal, educação e defesa da reforma da justiça criminal.
Deixamos para vocês os quadrinhos da Jamba Estúdios que contam um pouco mais sobre o Steve D’Angelo e o Last Prisoner Project. Antes, um spoiler! O Michael Thompson, personagem do quadrinho abaixo, foi liberado da prisão em Janeiro de 2021 🙂 Até o próximo texto do Blog da TGH