Um estudo publicado em 2019, pela revista americana Science Advances, aponta que a civilização humana já fumava cannabis há cerca de 2.500 anos. Os pesquisadores encontraram vestígios da planta queimada em cachimbos desenterrados em um cemitério em Jirzankal, no extremo oeste da China.
As análises demonstraram que o principal componente presente no material era o canabinol (CBN), um canabinoide produto da decomposição por oxidação do componente mais psicoativo da cannabis, o tetrahidrocanabinol (THC). Desta forma, este é o registro mais antigo do uso de cannabis por meio do fumo e, muito provavelmente, com fins psicoativos.
Ainda assim, mesmo nos tempos antes de Cristo, esta não é a documentação mais longeva do uso de cannabis por humanos. Na própria Ásia, existem indícios da domesticação do cânhamo há mais de 3.500 anos. Essas referências históricas indicam seu uso como alimento (sementes), bem como para a obtenção de óleo e aplicações envolvendo a fibra, em particular os caules, para confeccionar tecidos, além do uso medicinal.
Primeira civilização a usar cannabis para fins medicinais
O primeiro registro histórico de utilização da cannabis para fins medicinais aconteceu por volta de 2.700 a.C., no livro chinês Pen Tsao, considerado a primeira farmacopeia da história. A uso medicinal da cannabis era descrito para o tratamento de dores articulares.
A cannabis medicinal está presente também nos primórdios da civilização indiana. Nas antigas escrituras hindus, conhecidas como Os Vedas, a cannabis é considerada uma das cinco safras sagradas, juntamente da cevada e do soma (planta não identificada da qual o suco se tornou uma bebida ritualística). Acredita-se que terapias com canabinoides fazem parte do Ayurveda (medicina tradicional). No entanto, a primeira menção de ‘bhang’ –palavra em sânscrito para cannabis – como medicamento foi encontrada muito depois, nas obras de Sushruta, que se crê ter sido escrita entre 500-600 d.C..
Sushruta se refere à cannabis como “antifegmática”, recomendada como remédio para catarro acompanhado de diarreia, além de cura para febre biliar.
No Egito, antigos pergaminhos citam, ocasionalmente, a palavra ‘Shemshemet’, particularmente, em referência à medicina. Muitos especialistas acreditam que Shemshemet é o nome dado à cannabis nas civilizações antigas do país, detentor de técnicas avançadas de medicina à época. Uma das instruções mais interessantes encontradas para o uso da cannabis era triturar a planta com aipo e, no dia seguinte, aplicar na lavagem dos olhos de pacientes com glaucoma. Surpreendentemente, existem evidências modernas apoiando o uso de compostos de cannabis para ajudar no tratamento da doença, pois o THC tem o potencial de reduzir a pressão intraocular.
Ainda no Egito, o papiro Ebers, celebrado como o periódico médico completo mais antigo já descoberto, datando de cerca de 1.500 a.C., aponta uma formulação medicinal onde a Shemshemet (cannabis) deve ser triturada em mel, antes de ser aplicada dentro da vagina para “resfriar o útero e eliminar seu calor”. As propriedades anti-inflamatórias e antioxidantes bem documentadas da cannabis, provavelmente, desempenharam um papel neste tratamento.
Outro papiro egípcio antigo, o Berlin Papyri, mostra a indicação de Shemshemet (cannabis) como “pomada para afastar a febre”. O papiro Chester Beatty, que também se acredita ter sido escrito por volta de 1.300 a.C., faz referências à cannabis no tratamento de algumas doenças colorretais, provavelmente, incluindo a cólera.
Já na era moderna, em 1.464, o médico Ibn al-Badri, da faculdade médica de Calcutá, descreve a utilização da Cannabis no tratamento de epilepsias refratárias pela primeira vez.
Usos espirituais e ritualísticos
No Egito, a cannabis fazia parte de rituais fúnebres. Cientistas e arqueólogos descobriram pólen de cannabis nos restos mortais de Ramsés, o Grande, faraó em 1.213 a.C.. Traços de cannabis também foram encontrados em outras múmias egípcias antigas. Uma múmia que se acredita ter sido enterrada por volta de 950 a.C. tinha quantidade significativa de THC, junto com nicotina e cocaína, em seus tecidos.
Além disso, a deusa egípcia Sheshat, a divindade da escrita, era frequentemente representada com uma folha em forma de estrela de sete pontas acima de sua cabeça. Muitos acreditam ser uma ilustração da folha de cannabis, indicando a importância atribuída à planta na sociedade egípcia antiga.
No hinduismo, religião tradicional indiana, a cannabis é associada a um de seus principais deuses: Shiva. Várias lendas hindus falam sobre Shiva e seu consumo de bhang. Uma história muito conhecida relata que os deuses hindus agitaram o oceano cósmico para acessar o elixir da imortalidade (Amrit). Algumas versões dessa lenda afirmam que a cannabis começou a crescer onde as gotas desse elixir caíram.
Em outra versão, quando Shiva foi chamado para beber o veneno produzido no oceano agitado, sua garganta ficou azul. Conta-se que ele sentiu imensa dor, até receber bhang de sua esposa, Parvati.
A ligação entre a planta e o divino na antiga cultura hindu resultou no uso da cannabis por muitas pessoas, em tentativas de se tornarem mais próximas de seu Deus escolhido, Shiva. A cannabis é, tecnicamente, proibida na Índia até hoje, mas a lei não inclui as folhas da planta. Portanto, é comum testemunhar o consumo de bhang, especialmente na noite do festival de Shivaratri (Grande Noite de Shiva ou Noite de Shiva).
O uso ritualístico da cannabis foi registrado também em Israel. Há mais de 2.700 anos atrás, os fiéis de um santuário “santo dos santos” podem ter usado a planta. Pesquisadores descobriram cannabis queimada e incenso no local, que fica no Reino de Judá, região que, agora, inclui partes da Cisjordânia e do centro de Israel.
O começo da cannabis para fins industriais
Na antiguidade, a cannabis também era amplamente aplicada na produção de tecidos, papel e alimentos. As cordas de cânhamo foram encontradas em locais antigos em toda a Ásia e Oriente Médio.
Acredita-se que a fibra da cannabis foi usada no Egito até mesmo por trabalhadores, como parte de uma maneira engenhosa de quebrar pedras maiores. O tecido de cânhamo foi espremido nas fendas de uma grande rocha e coberto de água. Quando o tecido começou a se expandir, o mesmo aconteceu com a rachadura, resultando na quebra da pedra.
Na Índia, os antigos também teriam usado a planta do cânhamo para fins industriais, semelhante ao que foi visto em outras regiões. Evidências mostram os indianos como os primeiros a praticar a tecnologia de ‘hempcrete’ – uma forma de gesso que contém ‘bhang’ misturado com argila ou cal.
Da primeira civilização a usar cannabis até o presente
A Idade Antiga se encerrou em 476 d.C., mas o uso da cannabis não se foi junto com ela. A planta chegou à Europa, se espalhou pelo ocidente e aportou em terras brasileiras junto com as caravelas portuguesas – as velas eram feitas de tecido de cânhamo.
Desde então, a cannabis foi criminalizada em muitos lugares, já descriminalizada em tantos outros e seguimos descobrindo (ou redescobrindo) seu potencial a cada dia. Hoje, não há dúvidas que esta planta pode ser o centro de um grande mercado. Para saber mais sobre como a cannabis pode contribuir com o desenvolvimento econômico sustentável pelo mundo, confira mais matérias aqui no nosso blog.