Sem iniciativa do governo e do Congresso para regulamentar a Cannabis medicinal no país, pacientes vão à Justiça para ter acesso ao tratamento ou ao autocultivo. Na contramão de vários países desenvolvidos, o Brasil segue sem uma legislação reguladora. Enquanto o governo e o Congresso emperram o debate sobre a legalização dos canabinoides, pacientes e familiares têm de arcar com os custos de importação ou recorrer ao Judiciário para ter acesso a substâncias cuja eficácia já é comprovada cientificamente.
A comissão especial da Câmara dos Deputados, em 2021, aprovou o PL 399-2015 para disciplinar o cultivo medicinal e industrial da planta – o texto, porém, não foi apresentado ao plenário e, consequentemente, nem enviado ao Senado. Alguns estados, como Rio de Janeiro, Paraíba, Rio Grande do Norte, além do Distrito Federal, aprovaram leis que permitem a realização de pesquisas e o cultivo da Cannabis por associação de pacientes. Decisão recente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu salvo-conduto para garantir a três pessoas (uma mulher com câncer e dois homens com depressão) o direito ao cultivo para uso próprio sem o risco de repressão por parte da polícia e do Judiciário.
Mesmo assim, a insegurança jurídica permanece, o que é um entrave para investimentos, entrada de novas marcas de produto no mercado, o desenvolvimento de logística e, principalmente, a possibilidade de preços mais acessíveis. “Essa situação influencia diretamente na judicialização dos casos”, afirma o advogado Emílio Figueiredo, fundador da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas, um coletivo de advogados que facilita o compartilhamento de informações e o acesso à Justiça. A falta de legislação específica também impede que a Cannabis seja disponibilizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o que democratizaria o acesso ao tratamento, diz Figueiredo. Resultado: o paciente que recebe orientação médica para usar a Cannabis medicinal, mas não tem como custear o tratamento, recorre à Justiça.
Outro caminho que vem sendo explorado é o cultivo doméstico para a extração artesanal do óleo a partir da flor da Cannabis. Um processo trabalhoso, mas possível para quem não tem recursos financeiros e saúde para esperar durante anos pelo tratamento na fila da Justiça. Mas o plantio medicinal, apesar da recente decisão do STJ, ainda é crime. O que muitos fazem é assumir o risco: o paciente começa a plantar algumas mudas e entra com um pedido de habeas corpus na Justiça. “Trata-se de um salvo-conduto, que costuma ser expedido rapidamente e garante que o paciente não seja preso”, explica Gabriel Dutra Pietricovsky de Oliveira, advogado que conseguiu 36 autorizações judiciais para o autocultivo. Estima-se que há mais de 800 ações desse tipo no país.
“A Cannabis avança no Brasil pelo campo jurídico”, diz Rodrigo Mesquita, sócio de Melo Mesquita Advogados, especializado em serviços jurídicos no setor da Cannabis. Os sócios começaram o escritório em Brasília, mas devido ao aumento da demanda de casos, expandiu para São Paulo. A maior parte das associações de pacientes de Cannabis começou justamente com a iniciativa de uma mãe, que conseguia o salvo-conduto de cultivo para o fi lho doente, e que acabava repassando o excedente para outras famílias que viviam o mesmo drama. No Rio de Janeiro, essa é a história da APEPI (Apoio a Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal), fundada pela advogada Margarete Brito, 49, mãe de Sofia, portadora de uma síndrome rara, que impede o desenvolvimento normal do cérebro e provoca convulsões.
Já em São Paulo, a Cultive, que hoje tem 200 associados, surgiu com a Maria Aparecida Carvalho, que conseguiu o habeas corpus individual para plantar e produzir o óleo de CBD (canabidiol, substância não psicoativa da Cannabis) para a filha Clarian, que sofria com repetidas convulsões e era refratária aos tratamentos convencionais. Em 2016, ela começou a ensinar outras mães a plantar. Quatro anos depois, pediu um salvo-conduto para a associação. Atualmente a Cultive tem autorização definitiva para fornecer óleo a 21 pacientes associados. “Nosso objetivo é ampliar essa medida para outros doentes que estão na fila”, diz Cidinha, como é mais conhecida. Ela conta que, antes de aprender a plantar, recebeu óleo doado durante três anos de uma rede que atuava clandestinamente. “Eu precisava retribuir”, diz.